jueves, 24 de abril de 2008

Verde cimento


Não sei bem como foi, se foi o ar, mas acho que não porque tenho estado cheia dele nos últimos tempos e já mal posso cheirá-lo, não sei, como se eu tivesse cansada dessa coisa toda da respiração. Quando muito respiro pela boca, para enganar os transeuntes e fazer como se ainda me importasse com brisas e ventanias dentro de mim.

Então não, não foi o ar, foi outra coisa, talvez a grama no caminho para o colégio que me pareceu verde demais, e então veio a idéia de tinta, aos montes, um caminhão de tinta verde como que passando pela rua na surdina da noite e transformando um quadrado de grama meio desbotada, amarelo-outono, outono-quebradiço, em verde-demais. Aliás, vai ver que nem era grama, era cimento que eu, com minhas memórias facilmente perturbadas pela vontade de ver essas coisas, acabou que troquei pedra por mato e se bobear ainda confundo cidade com zona rural. E aí penso que é um mundo estranho esse, de pedras, falso, grama, falso, torre da igreja, falso, poça de água com pomba no meio, falso, jornal atirado no canto da rua como se rua tivesse canto, falso, mosquito que faz barulho no ouvido a noite quando quero dormir e nem lembro que canto de dia quando ele nem tem ouvido para apreciar, falso, porcentagem com número do lado e uma barra vertical roxa ao lado de outra verde, ah, sim, verdadeiro. Apesar de que acho que hoje em dia, nem isso mais serve pra suprir nossa dose diária de realidade.

Talvez uma buzina de carro. Berros em geral são reais. Ao menos, enquanto duram.

Mas também não foi uma buzina até porque realidade não poderia fazer esse tipo de coisa comigo, e a grama ou concreto que era verde-muito na verdade eu já nem me lembrava e lembrei agora só para ter algo para escrever e poder negar depois que não, não era. Acho que essas coisas acontecem como que assim mesmo, como se pega uma gripe por um ar que entra onde não devia ou um nariz que tromba com atmosfera dura demais e se a atmosfera não cai no chão, cai o nariz. Daí que não respiro mais, só pra disfarçar, de vez em quando, na biblioteca ou no corredor, esses lugares mais cheios de gente. E com a boca. Mas sim, como uma gripe, ou mosquito que entre bilhões de pessoas pousa exatamente no seu braço, ou entre infinitos mosquitos do mundo, é justamente aquele com corpo marrom escuro, quase preto, e asa que bate tão rápido que você quase não vê, esse justamente que tromba com seu braço, ou perna, e às vezes até no dedo do pé.

Sei que as coisas se somaram, e é capaz que nem acontecesse desse jeito se eu não tivesse bebido um café, desses em casa mesmo mas que ainda assim te fazem lembrar e viajar em uma pequena e insatisfatória overdose, ou underdose, se existisse, de nostalgia.
Sem isso, te garanto que não teria acontecido. E é uma pena que acabe tão rápido, e que mundos tão grandes acabem como se muda de assunto, como se agora eu quisesse falar de outra coisa. Mas acho que nem quero.
E subitamente já tem um caminhão de tinta verde andando pelas ruas, de novo, no meio da noite, fazendo o concreto desabrochar.

2 comentarios:

Anónimo dijo...

Ahhh Liz, vc manja muito escrever, e olha que eu leio MUITO!


E gostei, tem futuro!



Quem sabe, um dia queira ajudar os humildes do O PODER DA IGNORÂNCIA!

Unknown dijo...

Es una mezcla de sensaciones y una busca de respuestas y una nostalgia que llevas dendro la cual te hace escribir...
Muy bonito! "exponerse" (hacer con que te conozcan) o "esconderse" (hacer con que te desconozcan) a través de palabras es un don!
TRQM, Besos.